Evandro Affonso Ferreira e eu nos preparando para o ciclo de crítica em outubro de 2013 |
ESPERANDO GODOT NO ANHANGABAÚ:
O MENDIGO DE EVANDRO AFFONSO FERREIRA
Crítica de Vivian Schlesinger
Sei que somos reféns da própria
inquietude. Muitas vezes saímos mundo afora procurando tesouro que está
enterrado em nosso próprio quintal... quando tornamos viagem encontramos
tesouro nenhum – sequer casa nem mesmo quintal.
Estas frases poderiam resumir o enredo
de O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam, de
Evandro Affonso Ferreira, romance vencedor do Prêmio Jabuti 2013.
Afinal, o romance nada mais é do que a viagem de um homem rumo ao inferno de
si. Evoca Dante? Sim, mas lembra também o labirinto borgeano, os clássicos
épicos, ou a espera bequetiana. E não por acaso: Evandro Affonso Ferreira
conversa de igual para igual com seus mestres de outros séculos, e deixa pistas
de suas conversas em cada linha de seu romance. Segundo Vinícius Jatobá, em
crítica publicada no Estado de S. Paulo, é justamente essa erudição que reduz a
43 leitores o público de Evandro. Mas o livro tem muito a dizer a um público
muito maior do que esse, como logo ficará demonstrado.
Um homem profundamente erudito perambula as
ruas de São Paulo há dez anos à espera de N., sua amada, que o deixou, com duas
palavras: ACABOU-SE; ADEUS. Isso, o protagonista, não o autor. Mas o
autor também pode ser “acusado” por sua linguagem do abandono, do salve-se quem
puder, por deixar o leitor à entrada do romance, ao sabor da intertextualidade
erudita sem concessões. Entra-se só, sem aviso, sem pausa para respiração (o
romance é um parágrafo de 127 páginas), para ouvir-se a voz do pensamento deste
mendigo em sua descida à loucura in totum.
Para o personagem, a lucidez reside nas
palavras. Tem medo de perdê-las. E para demonstrá-lo, o autor subjuga impiedosamente
as palavras. As frases são curtas, fluidas, com muitas repetições. Economiza
artigos e adjetivos (Leitura é lenta, claudicante, tropeços amiúde –
mulher-molusco é vítima da miopia.), semeia palavras colecionadas, graves
ironias (Organização Mundial de Saúde (tenho certeza) ignora os maltrapilhos
alcoólatras de rosto intumescido), imagens sensoriais potentes, tudo para
aprisionar, em teia sonora, o leitor: Mãos ferruginosas clamando aproximação
suave daquele corpo que espalhava perfumes, diz de si e sua amada.
Impossível escapar à tentação da leitura em voz alta. E quanto mais se lê, mais
se mergulha no corpo decadente do mendigo, inteiramente arrastado pelas
palavras.
O narrador sabe qual será seu fim – todos o
sabemos. O mendigo é cada um de nós. Anuncia e teme a morte desde o
começo do romance. Inscreve obsessivamente a inicial da amada pela cidade, como
se pregasse a salvação. Ao fixá-la no concreto, a ela agarra-se, sabendo – ou
talvez, porque sabe - que ela não virá. Mas teme a loucura ainda mais. Talvez
seja melhor que o destrambelho in totum chegue antes do desastre parkinsoniano;
antes da certeza de não reaver jamais amor perdido; antes da chegada da
morte... Não é da morte que o mendigo tenta fugir, mas sim da perda do
domínio das palavras. Essa é a obsessão confessa do autor, também.
O mendigo poderia ser Vladimir, em Esperando Godot, de
Beckett, por ser teimosamente anônimo e convicto em sua auto-destruição. Não abre
mão da esperança de salvação até quase o final. Aí reside a beleza poética
da obra: enquanto persegue sua história de amor, o mendigo deixa de se
alimentar, de se banhar, canaliza toda sua energia na esperança. A única função
“realista” do personagem é de delinear a decomposição da personalidade
convencional mediante a experiência da desilusão.
Quando lhe perguntaram sobre Deus, em entrevista
concedida ao Jardim Alheio – grupo de crítica literária, Evandro Affonso
Ferreira disse “tenho quase certeza que não existe, mas rezo toda noite”. Assim
faz o mendigo. Lembrar a amada é uma forma de invocar a salvação, mesmo sabendo
que ela não virá. Assim como recomendou F. Scott Fitzgerald, que é preciso ser
capaz de enxergar que não há esperança, mas ainda assim ter a determinação de
fazer com que haja. Ele “traz ao romance a profunda consciência do absurdo da
existência humana – nossa desesperada busca por significado, nosso isolamento
individual, e a distância entre nossos desejos e a linguagem em que os
expressamos”. Isso foi dito sobre Beckett, mas aplica-se igualmente ao trabalho
de Evandro Affonso Ferreira.
“Para a querida amiga Vivian, este romance
da espera inútil. Beijos.” Assim inscreveu Evandro Affonso Ferreira, uma
dedicatória a mim no seu O mendigo... Eu já deveria ter desconfiado que
Beckett assinava junto.
-x-x-x-x-x-
-x-x-x-
ENTRE O AMOR E A INVENÇÃO:
A POESIA DE FREDERICO BARBOSA
Crítica de Vivian
Schlesinger
março de 2013
O pernambucano paulistano Frederico Barbosa é “admirável pela
maneira como associa contundência e construção”, conforme Arnaldo Antunes. Em seu Cantar de Amor Entre os
Escombros (Landy Editora, 2002),
o eu lírico é contundente amante: o livro é todo dedicado ao amor, fiel ao deus
do significado mesmo enquanto reza no altar da invenção de novas
construções. Quinto livro de Frederico Barbosa, poeta já plenamente
consagrado pelo público e por nossa melhor crítica, reúne mais de 20 anos de
poesia. Os poemas mais antigos foram escritos em 1980, os mais recentes, em 2002.
Conta com vários poemas inéditos e outros que, mesmo quando já conhecidos pelos
leitores, ganham leituras diversas ao serem agrupados de forma nova. Nas
palavras do próprio poeta, “percebe-se com mais clareza o que são: um cantar de
amor entre escombros”.
O conjunto está dividido em oito partes, algumas escritas
especialmente para este livro, outras selecionadas de livros anteriores. Quase
a metade dos poemas foram originalmente publicados em 1990 em Rarefato,
seu primeiro livro, fato que se revela significativo na análise do presente
conjunto. Os títulos de cada seção já
indicam o caminho fortemente sensorial dos poemas e da organização da obra em
si: Formas de Sentir; Sua Voz, Sua Visão; Sussurro Suave e Vivo; Na Caverna Escura;
Sono Silêncio; De Sonhos de Ser; Este Mar, Meu Coração; Revolução Permanente. Além do significado dos títulos, os sons
sibilantes e terminações fechadas aproximam o leitor, sussurram ao seu ouvido o
que está por vir.
“Formas de Sentir”, que abre a sequência, foi escrito especialmente
para esta publicação; é composto por seis poemas curtíssimos. O título fica próximo ao topo e os versos
deslocados para o pé da página, de modo a deixar amplo espaço em branco. Os títulos dos poemas, tais como “Desenhos”, “Perfumes”,
“Vozes”, são nada mais do que sugestões, mas as sensações tomam forma, pelas
mãos precisas, experientes deste poeta.
Podem ser lidos como as primeiras sensações entre dois seres que acabam
de se conhecer. O erotismo é latente,
seja pela forma, seja pelo conteúdo. Este é o caso, por exemplo, de “Sobporos”,
onde a leitura exige tal aproximação do leitor, que sugere precisamente o ato
de se observar alguém de muito perto, que até se possa lhe ver os poros. É altamente erótico, sem se quer aludir a
isto - obra de magia das palavras e sua escultura.
Já em “Sua Voz, Sua
Visão”, composto por poemas de 1990 e outros de 2000, o erotismo perpassa tudo,
mas com o distanciamento de quem fala do prosaico. Mera armadilha: o leitor, desavisado, não
consegue despregar os olhos do que vê, como em “Jeans”:
A carne forçada
sob a calça jeans
quase explode
querendo sair.
O tecido
vibra
fibra a fibra
trêmula grade
implodido jardim.
Enquanto a
carne
flora pura
implora em si.
Há aí preciosidades colhidas no cotidiano, cascalho iluminado pelo ourives,
para que o leitor perceba seu brilho.
“Paulistana de Verão” é exemplo:
.../o vento
leva-lhe a quase
saia
e vê-se a jóia
surpresa lapidada
Em
alguns poemas, a forma enriquece sensivelmente, mas há alguns de tal densidade
que suscitam a questão da forma como possível distração. É o caso de “O”, cujo impacto da figura de
flecha, raio, ou até abat-jour, um tanto óbvios no poema, desvia o olhar
da riqueza de
.../selado e rápido
um ar raro um raio
trans
passa
e
per
fura.../
Talvez pelo longo arco de tempo entre a publicação dos primeiros e
últimos poemas desta seção, talvez por escolha do autor, fica clara uma mudança
na relação com o concretismo. Nos poemas
mais antigos predomina o apuro gráfico, que segundo Amador Ribeiro Neto
(Cronópios), é “um zelo que deriva luxuosamente da Poesia Concreta”, enquanto
que nos mais recentes, a marca é o lirismo.
“Fragma Dias III”, publicado em 1990, é um bom exemplo do que poderia
mudar caso fosse escrito dez anos mais tarde.
Cuidadosa análise desta estrofe revela significados múltiplos,
provenientes em parte do movimento lateral dos versos:
III
CAI
mergulhando
d (sem)
e cabeça
da ponte
n (por)
o reflexo
perplexo
EM SI
Não há
dúvida que a forma aqui reforça o movimento vertical da queda, e ainda permite
olhares para ambos os lados “durante a queda”.
Mas será que este poema perderia algo, caso os versos estivessem centralizados
na página e alinhados à esquerda? Será
que o alinhamento não devolveria, talvez, a merecida percepção da tragédia, da
tristeza, da falta de alternativa a “cair em si” ao “cair da ponte”?
III
CAI
mergulhando
de (sem)
cabeça
da ponte
no (por)
reflexo
perplexo
EM SI
É impossível dizer como, e até se, o poeta teria escrito este poema
dez anos mais tarde, mas uma vez selecionado para esta coletânea, e inserido
particularmente onde foi, é imprescindível procurar entender como isso leva a
uma nova leitura. O poema não perde
valor por seu apego à forma, na escola do Concretismo, mas despojado destas
vestes ganha em limpidez: vê-se até o
fundo. Para o crítico
literário Manuel da Costa Pinto, Frederico Barbosa é “possivelmente o poeta que
mais explicitamente assume sua dívida para com o concretismo.”(Fabiano Calixto,
Lamparina Editorial). A pergunta, então,
é: até onde vai esta dívida?
Na seção “Sussurro Suave e Vivo”, os seis poemas recebem títulos de
canções de jazz, da década de 50, românticas e inseparáveis da ambientação de
dança lenta, em nightclubs aconchegantes. São sensualidades enroscadas em blues,
arrebatamentos de corpos. Evocam um
casal em fase de namoro, mas já com conhecimento do território mútuo. São poemas publicados nos primeiros livros do
autor, todos centralizados na página, para ganho de alguns, tais como “Blue
Moon”, que sugere um raio de lua incidindo sobre uma superfície líquida, e
indiferente para outros, como “Moonlight in Vermont”.
A seguir, “Na Caverna Escura”, os títulos dos poemas não têm unidade
aparente, mas os poemas em si fazem alusão à vida a dois, seus medos,
desencontros, “semáforos de impaciência”, encontros epifânicos. É nesta seção que se encontra o poema-chave
da obra, cujo verso deu origem ao título: “Raro Cantar”, publicado já no ano 2000, desenha a trajetória de um grande
amor. Primeiro, os amantes têm medo, por
medos passados, “do sim”; depois, cheios de “nós, cegos entrelaçados” brotavam;
hoje, “tramamos nós ao vento, desatados.”
Aí é que se ouve o cantar de amor entre os escombros.
Neste grupo, no mesmo diapasão, ecoa “Nós/ Paisagens”, uma série de
poemas também escritos especialmente para esta publicação. O engenho rítmico e musical são sua marca:
4
onde vou
só
levo-me
onde sou
nós
vôo
ao fundo
Nesta
série, a sofisticação imagética aliada à musicalidade resultam em cristalina
simplicidade: les mots justes do poeta maduro.
O leitor será surpreendido em “Sono Silêncio” por uma ilustração de
grande impacto: uma serpente minimalista, como que pronta a dar o bote nos
poemas, ao lado. São três, centrados na
memória do amor e erotismo, na ausência, na insônia, em clara referência à
perda. O título da seção remete à morte,
e assim é com esses poemas. Nesta luz, a
interpretação da ilustração é bastante direta.
“De Sonhos de Ser” também é uma sequência curta, mas de poemas
centrados em outro sujeito: uma
menina (“Menina Lendo”), ao que tudo
indica, filha do eu lírico. Aí não há
escombros, não há tristeza, há sobretudo uma relação construída através da
leitura. Os sonhos de ser do eu lírico e
do sujeito se misturam.
Logo em seguida, em “Este Mar, Meu Coração”, o eu lírico afasta-se do
sujeito, despersonaliza-o, volta a vestir o poema com forma chamativa. Submerge o lirismo. Dá a impressão de uma obra ainda inacabada,
até pela variação entre título e não-título, font pequeno e font
muito grande, ocupação da página, e sonoridade.
O próprio autor refere que esta seção é parte de um livro que estava
escrevendo naquele momento, Grito Solar- anatomia do desejo, até então
não publicado. A grande exceção é o
poema publicado em 1993, “Sol Syl”, um “clássico” concreto de amor, na melhor
tradição de Augusto de Campos.
“Revolução permanente” fecha a coletânea, com poemas extraídos de seu
primeiro livro, Rarefato. Frederico
Barbosa, em entrevistas diversas, afirma que sem inovação não há poesia. Está em revolução permanente, à busca desta
inovação. E nesta óptica, o poema que
fecha o livro, intitulado “Falso Final” é o mesmo que dizer que a atual ordem
será imediatamente desfeita por algo novo.
Subjacente a esta premência está a hegemonia da dicção concretista na
poesia brasileira.
Mas há outra, mais profunda, camada de significado, que revela a maior
densidade analítica da obra. Se é de
amor que se canta, o último poema, “Falso Final”, dá indícios de que entre
escombros há sempre uma surpresa à espreita.
Se os escombros são a vida, há sempre amor à espreita. É falso o final daquele amor que está entre
escombros. São imensos, a beleza e o
lirismo da obra toda. Independente do
respeito às suas influências confessas (João Cabral de Melo Neto, Augusto e
Haroldo de Campos, Décio Pignatari), e mesmo com alguns poemas calcados até o
queixo nesta tradição, Frederico Barbosa, com esta coletânea, vai além de permitir que se perceba com mais clareza o
que são estes poemas: demonstra que já
saldou sua dívida, e está a construir sua nova casa. Acerta em cheio Antonio Candido: “o lugar de
Frederico Barbosa é entre os verdadeiros poetas de sua geração”.
Título: Cantar de Amor
Entre os Escombros
Autor: Frederico
Barbosa
Editora: Landy
Editorial, 112 páginas
Ano: 2002
-x-x-x-x-
Ricardo Lísias no Jardim Alheio em abril de 2013 |
Matei o melhor de mim: O céu dos suicidas, de Ricardo
Lísias
Crítica de Vivian Schlesinger
Abril 2013
Um jovem especialista em coleções,
licenciado em História, culto e angustiado, busca, entre surtos de mania e de
depressão, parte imaginária de si. Tem
um delírio recorrente a respeito de um amigo psicótico, a quem chama de André,
e para quem construiu uma vida paralela detalhada. O amigo imaginário, ex-colega de faculdade e
de república, é generoso, sabe cozinhar, faz amigos com facilidade, é em tudo o
inverso do próprio Ricardo. Mas André
tem inexplicáveis crises, que o levam a repetidas internações em clínicas
psiquiátricas, de onde “conta” detalhes ao seu criador, Ricardo, cada vez que
tem alta. Em um dado momento, André se
“hospeda” na casa de Ricardo, quebra tudo que há lá, e Ricardo o expulsa. Ainda ligado a esse amigo imaginário, Ricardo
“recebe” um telefonema de André alguns dias depois, pedindo ajuda, mas Ricardo
recusa-se a ajudá-lo. É aí que André se
“suicida”.
Não é isso que está escrito, mas
tudo isso é contado de forma muito pessoal em O céu dos suicidas, dando
ao leitor a sensação de acompanhar o narrador, Ricardo, com uma câmera de
vídeo, enquanto o atordoado protagonista entra e sai de surtos de euforia,
confusão, agressividade, lapsos de memória.
Estes sintomas não são raros entre pessoas acometidas pelo transtorno da
bipolaridade, mas em menor grau refletem crises que todo habitante de grande
cidade passa em algum momento de sua vida.
O tamanho exíguo dos capítulos é um recurso eficiente para dar a imagem
de alguém em surtos, em crises agudas e de intervalos rápidos. A linguagem sincopada, reduzida a frases
curtas e com palavras repetidas aqui e ali, reforça sutilmente a sensação de
ansiedade do narrador. Ele conta, em primeira pessoa, sua trajetória errática
em busca de ouvir de alguém, quase que qualquer um, que suicidas também vão
para o céu.
Mas nesse romance nem André, nem os
fatos “biográficos” do narrador aparecem ex nihilo: o relato começa pela
volta à infância, ao fato que considera o mais significativo. Foi um metódico
colecionador de selos, de tampinhas de garrafa, de dados sobre variação na
moeda, de fatos sobre o time de futebol favorito. Confessa ter sofrido da obsessão com
colecionismo. Conta seus altos e baixos: uma coleção que começa aqui, outra que
termina ali, jogada no lixo da estação de metrô. “Trato meus problemas em silêncio. Eu os
organizo e reorganizo na cabeça, como se fossem uma coleção, até
solucioná-los”, diz; mas poucos parágrafos adiante, joga fora as tampinhas, em
um impulso. Em momentos de crise, em vez
do silêncio, grita na rua, e desespera-se com a sensação de que ninguém o
ouve. Oscila entre o conforto da
sensação de controle, exercido pelo colecionismo, e a perigosa fragmentação da
realidade, colocando-se em situações de perigo. Vai da saudade de algo indefinível até o ódio
e desprezo por outros colecionadores, a quem agride violentamente. Nos episódios em que coisas ruins lhe
acontecem, culpa sempre os outros, mas não fica claro se não é o próprio
Ricardo que causa estes desastres, o que reforça a hipótese de
bipolaridade. Não viria como surpresa ao
final do romance uma revelação do tipo que aparece em Fight club, de
Chuck Palahniuk.
É disso, mas não só disso, que trata
Ricardo Lísias nesse romance. O jovem
autor jogador de xadrez, tradutor, corredor e professor, escolhido pela Granta
entre os melhores escritores jovens brasileiros, exerce de forma sistemática,
neste livro, a prática de vestir a ficção com adereços realistas, no intuito de
mostrar ao leitor que a ficção tem sua própria realidade, e assim, valorizar a
leitura da ficção per se. Engana o
leitor, como faz a boa literatura; exige dele máxima atenção para não derrapar
nas curvas da ficção e cair na armadilha da realidade.
A estrada é sinuosa: a começar pela
confusão causada pela homonímia do protagonista e autor, passando pelas
semelhanças geográficas (faculdade na Unicamp, moradia em São Paulo), até
diferenças mínimas, plantadas propositadamente para aproximar autor e narrador,
enquanto aparentemente os afasta (autor é licenciado em Letras, narrador em
História). Se a intenção fosse afastar
biografia e romance, por que não atribuir ao personagem a faculdade de
Medicina, ou colocá-lo em outra cidade do interior de São Paulo, ou de outro
Estado, menos familiares ao autor ? Não
por insuficiente pesquisa, como demonstrou ao se preparar para escrever O
livro dos mandarins. Se manteve personagem e biografia tão próximos, o fez
com objetivo literário. Cabe ao leitor
descobrir qual é, e se o realizou. É
fútil a discussão sobre a biografia do autor, nessa ótica, mas é inegável que a
confusão resulta em curiosidade (mórbida?) do leitor e com isso amplia
significantemente seu sucesso comercial.
E a utilização do nome do autor em personagem coloca Lísias em boa companhia:
Philip Roth, John Updike, Alberto Manguel, Sylvia Plath, entre outros, também o
fizeram.
Autor de Duas Praças (finalista
do prêmio Portugal Telecom 2006) e Anna O. e Outras Novelas (prêmio
Jabuti 2008), Lísias estruturou O céu dos suicidas em 90 curtos capítulos. Ordenados quase como um diário, apesar de não
haver data, pode presumir-se que estão em ordem cronológica, com exceção de flashbacks
que remetem ao período que antecedeu a morte do amigo. Interpretado como um
bipolar, esse personagem busca reconciliar-se com a ausência de parte de si,
aquela que já lhe causou tanta confusão que o levou a criar um mecanismo de
eliminação de seu outro, o “suicídio” do outro.
Visto de outra forma, e há várias
plausíveis, é possível entender o protagonista como alguém que busca a volta a
um tempo passado, quando até grandes sustos se transformam em doces
memórias. André, o amigo que simboliza o
passado, é “lindo”, querido por todos, mas incompreensível, e, às vezes,
destrutivo. André surge na vida de Ricardo já adulto, na faculdade, no momento
em que Ricardo passa a viver longe da família.
“Juntos”, vivem experiências típicas de jovens nessa fase: bebedeiras, visitas a casas de massagem,
adoção de novos hobbies (culinária).
Portanto, André pode representar um período de liberdade na vida de
Ricardo, em que há momentos maravilhosos e outros de solidão e autodestruição.
Neste, como em vários outros romances
e contos de Lísisas, o protagonista não passa por um desfecho conclusivo, mas,
entre o começo e o final, há um bem delineado arco de mudanças. Seja pela interpretação psiquiátrica, seja
pela universal, o protagonista não se fortalece com o sofrimento; ao contrário,
sai ferido e fragilizado. Também neste
ângulo o autor se posiciona de forma coerente com o que considera a boa
literatura contemporânea: aquela em que
contar a História é menos importante do que contar o que acontece com a vida
das pessoas em consequência da História.
E isso ele faz de forma contundente.
Como diz Martin Amis, em Casa de encontros, “A dor que não te
mata, não te fortalece. Te enfraquece, e te mata mais tarde.”
Carlos Felipe Moisés no Jardim Alheio em junho de 2013 |
De pai para filho, da alegria ao desespero:
COLTRANE BALLADS
(Carlos Felipe Moisés, Noite
Nula, Nankin, 2008)
Crítica de Vivian
Schlesinger
“Coltrane Ballads”
é um poema que usa a linguagem musical para demonstrar o vínculo entre pai e
filho, a tentativa “de criar um pendant verbal... lidando com as palavras como
massas sonoras, não só como conteúdos,” segundo o próprio autor, em entrevista
a Ricardo Silvestrin. É através da
relação do sujeito poético com a música de John Coltrane que o leitor descobre a
perda do filho, a dor insuportável que isso causa ao pai, e a remota esperança
do reencontro. Dividido em quatro partes
desiguais, numeradas, o poema começa, no primeiro segmento, com o registro dos
tons e instrumentos ao fundo (“sax tenor... agudos/ suaves..). Em tom intimista, entra a voz poética em
primeira pessoa, a revelar que essa música ficou no passado, na memória, “Desde
então sei/ de cor. Nunca mais ouvi mas/
sou capaz de cantarolar nota/ por nota...”
A tristeza contida prenuncia-se mediante esse “então.”
O segundo
segmento tem um tom mais prosaico. É um
diálogo entre pai e filho (“Emprestou né pai?”), sobre uma conversa do filho
com um amigo. Ao dar voz ao pai e ao
filho, o poeta dá concretude ao sujeito do poema e a seu interlocutor, e os
aproxima do leitor. A música de Coltrane
os une: o pai dá ao filho o CD (ou
vinil?), “Pode ficar : é seu./ Você/ ouve melhor do que eu”./ Tem-se a sensação de intimidade partilhada
com o leitor. A angústia, vagamente
sugerida no segmento anterior, intensifica-se e começa a tomar forma. Apesar da emoção contida, as quebras nos
versos, e o deslocamento lateral da palavra “Você” referindo-se ao filho, lembram
uma pausa por embargo na voz poética, um nó na garganta. O segmento, que começa distante, no tempo
passado (“Um dia ele ouviu...”) termina no presente (“Pode ficar: é seu./ Você/
ouve melhor do que eu”). O leitor sabe
que está diante de algo muito grande, maior do que o sujeito do poema, mas
ainda não é possível definir-se a origem dessa angústia. As rimas, raras, dão leveza aos versos (me
viu, sorriu; me deu, é seu, que eu).
Nada prepara o leitor para o que vem a seguir.
É
avassalador: “a casa toda
desmorona,/”. No terceiro segmento a voz
poética se descontrola. Surge uma
torrente de metáforas contundentes em numerosos versos que se deslocam no
papel, ora para a direita, ora para a esquerda, tal qual águas que se
extravasam repentinamente de uma represa.
É o desespero em palavras. Em
contraste com o segmento anterior, nada há de prosaico aqui. A referência ao nome de duas faixas do
Ballads, “Say it, Over and over again,” e “You don’t know what love is,” também
são pistas do que o sujeito poético ouve:
repita outra e outra vez, tente, tente, e a voz na noite nula que diz,
quase em tom acusatório, você não sabe o que é o amor.
Nesse segmento
estabelece-se a filiação do poema ao livro, Noite
Nula, no verso “...no meio da noite/ nula uma voz reboa...”. É no desespero, na inutilidade de lutar
contra o esmagamento, “Tentei, tentei, continuo a tentar...” que esta voz se rende, “...não ouço/ mais
nada.” Todos os poemas do livro, afinal,
dão vida a pessoas mortas, uns com mais, outros com menos carga emocional, mas
todos com a marca da memória, de impedir que sejam engolidos pela noite nula. Noite nula é noite de perda: na noite nula,
algo se desintegra. Carlos Felipe
Moisés não poupa o leitor, explora todas as possibilidades, por crer que nenhum
fato seja indizível.
No último
segmento há a volta à contenção através da disciplina da música e da economia
de versos. Nada resta se não sonhar com
o reencontro: “...um dia/ vamos ouvir tudo de novo/ lado a lado”. A repetição dos dois agudos, suaves
sequências, “ouvidos” no começo, fazem o papel que fariam no jazz, de retomar
alguns acordes, mas não fazer tudo igual, criando um novo nuance com os mesmos
elementos. Dá à perda uma nova dimensão,
a da eternidade que separa este pai de seu filho. É justamente ao sonhar com o dia do
reencontro que o sujeito do poema faz lembrar que esse dia não chegará enquanto
ele viver. O leitor sente a dor deste
pai. Na melhor tradição pessoana, Carlos
Felipe Moisés finge:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve
Mas só a que eles não têm.
(Fernando Pessoa, Autopsicografia)
-x-x-x-x-x-
Concurso Literário
hebraica São Paulo
Este livro foi publicado com os textos vencedores
de 2010, 2011, e 2012
Meu poema, "Terminal", está na página 146.
PAPAYA DAWNS
PAPAYA NA MADRUGADA
Poems - Bilingual edition
order at vivianschlesinger@gmail.com
Praise for Papaya dawns
Na opinião dos críticos
“Papaya dawns is really a lovely, sensual
poem in either language. I love the
movement from sex to food and back to sex again, and the movement from night to
day. This poem has a biorhythmic cycle
that feels just right.”
“Papaya na madrugada é um poema delicioso, sensual em qualquer
idioma. Adorei a transição do sexo às
frutas e de volta ao sexo novamente, e a transição da noite para o dia. Esse poema tem o biorritmo
perfeito.”
“Janka’s sealed trains—a horrifying list
of the first things one erases about a bad experience: the details that cause the pain. They cannot be allowed to fade, but they also
are unbearable to live with every day.
It’s so powerful, this ending, with its irony.”
“janka e os trens trancados—lista aterrorizante das primeiras coisas
que se apaga em uma experiência ruim: os
detalhes dolorosos. Não se pode
deixá-los desvanescer, mas é insuportável viver com eles todos os dias. É tão poderoso o final, com tal ironia.”
Dan Waters
Poeta
Emblema (Poet Laureate) de Martha’s Vineyard desde 2006
“My
dear Vivian, there is a heart in your poems, as well as originality, stylistic vigor. I imagine that one day the heart pulse may
overrule the style. This book is your
poetic baby. Keep writing to give birth
to many more.”
“Querida Vivian, há um
coração em seus poemas, e originalidade, vigor no estilo. Imagino que um dia o pulso poderá subjugar o
estilo. Esse livro é seu bebê
poético. Continue escrevendo para dar a
luz a muitos mais.”
Mira Hamermesh
BBC award-winning
film maker, artist and writer
“The poems metamorphose in a stolen kiss, in an
anxious telegram, in flowering eyes, in shards of glass or in clouds of
coffee.”
“Os poemas se metamorfoseiam num beijo roubado, num
telegrama aflito, em olhos floridos, em cacos de vidro ou em nuvens de café.”
Reynaldo Damazio
crítico literário da Folha, editor, poeta
“Dear Vivian, your poems seem to me to have
a strength and integrity which makes me quite happy for you to
use one of my poems as an epigraph for your book.”
“Cara Vivian, seus poemas me parecem ter tal força e
integridade que fico muito feliz que você use um dos meus poemas
como epígrafe em seu livro.”
Ruth
Fainlight, escritora, poeta, libretista
Prêmio Livro
do Ano dos Críticos Literários Britânicos 2010
outra qu4rta-feira
Antologia de Prosa e Verso
order at vivianschlesinger@gmail.com
Esta
antologia reúne textos, em prosa e verso, de doze autores com formações e estilos
muito diversos. Todas
as quartas-feiras, ou quase, esses autores se encontram para fazer e discutir
literatura, para ler e ouvir, sentir e pensar os meandros de um ofício que toca
fundo na linguagem humana e seus labirintos.
A
oficina literária que deu origem a este livro, e que se realiza há quinze anos,
tem a coordenação do poeta, tradutor e ensaísta Carlos Felipe Moisés, que
confessa bem humorado ser impossível “coordenar esse grupo formado de
sensibilidades heterogêneas, todas vacinadas, de nascença, contra qualquer
espécie de coordenação”.
O
resultado são os capítulos de lirismo
redivivo, inquieto e provocador, das cenas e personagens de um cotidiano
imaginado, que agora transcendem o círculo intimista da oficina e chegam ao
interlocutor hipotético, nas dobras da cidade, nas esquinas do verso, nos
cruzamentos movimentados entre o trágico e o cômico.
Que os leitores deste Outra qu4rta-feira abram as portas do
livro, respirem fundo e fiquem à vontade...
Reynaldo Damazio, crítico da Folha
Reynaldo Damazio, crítico da Folha
NARRATIVAS E POÉTICAS
ANTOLOGIA DE PROSA E VERSO
CONCURSO GUEMANISSE POESIA E PROSA 2008
textos vencedores
(Poema premiado: "Pai")
Embora sejamos amadores no trato da palavra e na forma de nos
comunicarmos temos a consciência de que nada é por acaso e muito menos
em vão.
A narração de histórias, uma das artes mais antigas do mundo, possui sua
importância como primeira forma consciente de comunicação literária
elaborada pela humanidade, com o intuito de difundir, ao longo de suas
gerações toda a diversidade cultural existente.
Muito bom, parabéns! Estarei aqui todos os dias!
ReplyDeleteBjs
Michel Neumark
Parabéns, vi, pelo blog, tá bem legal. Sugestão minha, coloque um contador de pessoas que estiveram nele. No próprio blog tem um lugar que ensina como fazer.
ReplyDeletebeijão
Ruben.H